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As cenas das batalhas perdidas

No início do século XVI, os dois grandes artistas de Florença na época receberam a encomenda de produzir duas obras de prestígio para a Sala del Gran Consiglio

Giuliana Piutti


La Sala del Gran Consiglio. A crise terrível que irrompeu em Florença em 1474 com a expulsão de Pietro de Médici, governante da cidade, e que perdurou pelos anos seguintes, dominada pela pregação obstinada do frei dominicano Gerolamo Savonarola, foi acalmada nos primeiros anos do século XVI. A República alcançou estabilidade em particular após a eleição, em 1502, de Pier Soderini para o posto de Gonfaloneiro de Justiça. Homem de alta estima em toda a cidade, Soderini lançou uma política de artes que visava aumentar o prestígio da república que surgia. Suas várias iniciativas incluíam a decoração da Sala del Gran Consiglio no Palazzo Vecchio com pinturas que celebravam a história, retratando as vitórias militares florentinas.


OS DOIS ARTISTAS MAIS IMPORTANTES DE FLORENÇA NA ÉPOCA FORAM CHAMADOS PARA CONTRIBUIR: LEONARDO E MICHELANGELO. O primeiro foi contratado para pintar a Batalha de Anghiari, vencida pelos florentinos contra o Visconti em 1440, e o segundo, a Batalha de Cascina, vencida em 1364 contra os pisanos. O Salão foi construído entre 1494 e 1498 para o Grande Conselho. Vasari, em sua biografia do arquiteto que o projetou, o descreveu como uma sala no formato de um trapézio. Na parede leste, a mais comprida da sala, ficava a tribuna, um pavilhão com arquitrave no centro da parede, onde a Signoria (o órgão político supremo, composto de oito Priores e o Gonfaloneiro de Justiça) se sentavam. Nas laterais da tribuna, ficavam duas grandes paredes medindo cerca de 7 metros de altura e 18 metros de comprimento, reservadas para as duas cenas de batalha. O espaço à direita provavelmente foi designado a Leonardo, e o da esquerda, a Michelangelo. Hoje, a aparência da sala é diferente, devido à intervenção de Vasari, que, ao longo de um período de 20 anos, a partir da década de 1560, remodelou e decorou todo o salão, seguindo um programa iconográfico que celebrava as realizações da Casa de Médici e, em particular, Cosimo I. Posteriormente, a Sala del Gran Consiglio ficou conhecida como o Salone dei Cinquecento.


ENCOMENDA DE LEONARDO. Em 04 de maio de 1504, a Signoria decidiu contratar Leonardo para pintar a Batalha de Anghiari, determinando também que o artista podia começar a pintar antes de concluir o desenho preparatório. Mas já no final do ano anterior, entre outubro e dezembro de 1503, já se havia dado início aos esforços para garantir a Sala del Papa no monastério de Santa Maria Novella, que serviria como oficina de preparação do desenho e, a partir de 08 de janeiro de 1504, Leonardo surge em vários documentos comprovando que foram realizados pagamentos ao artista, além de várias despesas para o local de trabalho já em atividade, incluindo aquelas para a realização do desenho, para o qual foram utilizados “uma resma e 29 maços de folhas em tamanho real, 88 libras de farinha para fabricação de cola, e uma medida de tecido para unir as folhas”. Graças a uma anotação feita pelo próprio Leonardo, sabemos o dia e a hora exatos em que ele começou a trabalhar na parede do salão. “No dia 06 de junho de 1505, uma sexta-feira, às 13 horas, eu comecei a pintar dentro do palácio.” Naquele momento, portanto, Leonardo já devia ter uma ideia muito clara da composição da cena, que englobava vários episódios diferentes que se moviam das cenas laterais para a cena central, o Combate pelo Estandarte, que seria a única parte da pintura a ser concluída. Mas ele certamente não tinha elaborado todo o desenho, limitando-se a desenvolver o modelo apenas para o episódio central, aquele pintado na parede. O trabalho continuou, mas, em maio de 1506, Leonardo solicitou à Signoria de Florença permissão para passar 3 meses em Milão, interrompendo o progresso da pintura da parede. Em Milão, ele solicitou mais tempo para ficar fora, que lhe foi concedido, e ele acabou voltando a Florença só em 1507.


UMA SEGUNDA SÉRIE DE ESTUDOS PREPARATÓRIOS REMONTA A ESTE PERÍODO prova da volta definitiva do artista para a composição, especialmente para as duas porções laterais. Entretanto, ele não continuou a trabalhar na pintura, e ela permaneceu incompleta.

Apesar disso, em 30 de abril de 1513, a Signoria, ciente de sua importância embora não tivesse sido concluída, mandou construir uma estrutura de madeira medindo cerca de 25 metros “para fortalecer [ou seja, proteger, enquadrar] as figuras pintadas na Sala Grande della Guardia pelas mãos de Leonardo da Vinci, para defendê-las da destruição”. O método utilizado para a pintura, que pode ser deduzido da lista documentada de materiais utilizados e de vários relatos contemporâneos, era a técnica da “massa”, que consistia de espalhar um tipo de base na parede com uma espátula quente, criando uma espécie de base de massa impermeável sobre a qual o artista podia trabalhar com óleos como se estivesse pintando um painel, obtendo cores mais brilhantes do que as obtidas com a técnica tradicional do afresco.


UM RELATO PARTICULARMENTE IMPORTANTE é o de Anonimo Gaddiano ou Magliabechiano, autor de um texto escrito entre 1537 e 1542, dedicado ao trabalho dos florentinos contemporâneos, no qual ele descreveu a técnica experimental utilizada por Leonardo envolvendo a secagem da tinta utilizando uma “grande fogueira de carvão”. De acordo com esta fonte, o artista fez um teste em um pequeno painel antes de experimentar a técnica na parede, com resultados positivos. Mas no caso da pintura na parede, o experimento só funcionou na parte inferior, enquanto que, na parte superior, “...por conta da grande distância, o calor não a alcançou, e ela escorreu”.


A OBRA FOI DESCRITA POR OUTRO CONTEMPORÂNEO, PAOLO GIOVIO, na curta biografia de Leonardo escrita na terceira década do século 16, como “...magnífica, mas, infelizmente, incompleta”. Ela permaneceria invisível por pouco mais de 50 anos, até a reforma realizada por Vasari e, embora incompleta e danificada, até essa época, continuaria sendo uma das atrações mais interessantes da cidade. Isso é explicitamente afirmado em uma carta de 17 de agosto de 1549, na qual o florentino Anton Francesco Doni forneceu ao veneziano Alberto Lollio uma lista com as atrações mais interessantes de Florença, recomendando que ele passasse no Palazzo Vecchio para dar uma olhada “....em um grupo de homens e cavalos, uma obra de batalha de Leonardo da Vinci, que parecia uma coisa milagrosa”. Com a intervenção de Vasari, a cena de Leonardo foi coberta por um grande afresco da Vitória de Cosimo I em Marciano em Val di Chiana. A frase “cerca trova” (procure que você acha), pintada em branco em um estandarte verde no plano de fundo do afresco, pode se referir à obra que está embaixo, que provavelmente foi simplesmente coberta, não destruída. Na verdade, deduziu-se que Vasari se limitou a cobrir, sem destruir a obra por baixo, como ele também teria feito no caso da Trindade de Masaccio na igreja de Santa Maria Novella, escondida atrás do altar que ele realizou para a família Capponi e que foi revelado em 1860. 


ENCOMENDA DE MICHELANGELO. Foi durante o verão de 1504 que Michelangelo, que tinha acabado de concluir o Davi de mármore colocado na entrada do Palazzo Vecchio como emblema da liberdade republicana, foi incumbido de pintar a Batalha de Cascina, provavelmente na seção da parede na Sala del Gran Consiglio à esquerda da tribuna, quase como que provocando uma comparação e uma competição entre os dois artistas. Michelangelo acabou produzindo somente o desenho preparatório, já que no início de 1505 ele foi chamado a Roma pelo Papa Júlio II para esculpir seu túmulo monumental, que seria colocado na Basílica de São Pedro. Em vez de um momento durante a batalha, Michelangelo optou por retratar a cena antes do conflito, um evento que aconteceu durante o ensolarado mês de julho de 1364 e foi relatado na Crônica de Villani, pela qual sabemos que os soldados florentinos foram surpreendidos pelos pisanos, que atacaram enquanto eles se refrescavam nas águas do Rio Arno. Portanto, o desenho representava o momento no qual os florentinos estavam saindo do rio e pegando suas armas, confirmando, também nesta obra, a centralidade do nu masculino que acompanharia o artista em toda sua longa carreira.


OS DESENHOS. Nenhum dos desenhos produzidos pelos dois artistas sobreviveu, pois foram tão admirados, estudados e copiados que rapidamente se estragaram. O que sobreviveram foram várias cópias dos mesmos.

A cópia mais conhecida do desenho de Michelangelo - que foi imediatamente considerada, conforme expressado por Vasari, “mais divino do que humano”, preservada em uma sala no Ospedale dei Tintori em Saint’ Onofrio, depois levada para Santa Maria Novella, depois para o Palazzo Médici e provavelmente destruída em 1516 - é a de Aristotile da Sangallo. Ele havia feito uma cópia inicial dela em papel-cartão a partir da qual, em 1542, por sugestão de Vasari, ele produziu uma “pintura a óleo chiaroscuro” (e, assim, não colorida, para reproduzir o efeito do desenho original), que tinha sido identificada como o painel que agora faz parte da Coleção Leicester.


VASARI ESCREVEU A SEGUINTE DESCRIÇÃO EVOCATIVA DA OBRA: “...ali podia ser vista, retratada pelas mãos de Michel-agnolo, uma agitação para se armarem a fim de dar assistência a seus companheiros, outros afivelando suas couraças, muitos prendendo outros tipos de armadura a seus corpos [...] e ali podiam ser vistas as atitudes mais extravagantes, alguns de pé, alguns ajoelhados ou curvados, outros esticados horizontalmente e lutando em pleno ar, e todos com maestria na perspectiva”. O artista enfatizou a representação de corpos nus vigorosos, diferenciados por suas torções impossíveis, pontos de vista inéditos e poses variadas e artificiais, em parte retiradas da arte clássica, em parte inspiradas pelo princípio de “varietas”, que foi originalmente emprestado da cultura literária, mas que, àquela altura, havia se tornado parte de uma linguagem experimental artística. Toda uma geração de jovens artistas - entre os quais devemos destacar, no mínimo, entre os vários citados em Vidas de Vasari, Rafael, que viveu em Florença entre 1504 e 1508, Andrea del Sarto, Pontormo e Rosso Fiorentino - foi moldada por este inovador texto visual, que se distanciava e muito do equilíbrio e da compostura da linguagem renascentista. Mas a fama do desenho e, presumivelmente, também uma ou mais de suas cópias, se espalhou até Veneza, onde Ticiano, no início da década de 1520, inseriu uma figura desenhada da obra de Michelangelo no Bacanal dos Andrianos, uma das quatro pinturas realizadas para o camerino do Duque Alfonso d’Este. 

Também BENVENUTO CELLINI, em seus escritos e, acima de tudo, em sua autobiografia, escrita entre 1558 e 1566, confirmou que as obras florentinas de Michelangelo foram fundamentais para sua própria formação enquanto artista, em particular a Batalha de Cascina, que ele descreve assim: “...esses soldados nus adiantando-se para as armas, e com tantos gestos belíssimos [...] nenhuma obra dos antigos ou modernos conseguiu alcançar tão alta marca”.

Para Cellini, esta obra era ainda superior à abóbada da Capela Sistina, pintada pelo artista entre 1508 e 1512. “Embora o divino Michelangelo tenha posteriormente executado a grande capela para o Papa Júlio, seu talento jamais atingiu nem a metade de tal nível de perfeição, seu talento jamais se igualou à potência daqueles primeiros estudos”. E é a Benvenuto Cellini que devemos a definição “escola do mundo”, atribuída aos desenhos de Michelangelo e Leonardo devido a sua função exemplar como modelo inovador para as gerações posteriores de artistas.


EVIDÊNCIAS DA OBRA DE LEONARDO TAMBÉM SOBREVIVERAM. Diversas cópias, gráficas e pictóricas, chegaram até nós, derivadas da pintura na parede, do desenho ou do painel experimental realizado pelo pintor.

O tema, em todas as cópias, é somente a parte central da cena, que, como já vimos, foi a única parte concluída e pintada na parede: O Combate pelo Estandarte. Muitas cópias coloridas pintadas foram realizadas, incluindo a dita Cópia de Uffizi, a Tavola Doria e a cópia no Museu Horne em Florença, todas realizadas no século XVI.

Mesmo após o desaparecimento da ambas as pinturas na parede e do desenho, a obra de Leonardo continuou a ser copiada, em parte graças à existência do painel no qual o artista testou a técnica que ele utilizou na parede na época, com os resultados decepcionantes citados acima. É o caso da gravura de Lorenzo Zacchia, que contém uma inscrição explicativa no canto inferior direito, além do nome do autor e a data de execução. Mas a cópia mais famosa é aquela realizada por Rubens durante sua estadia na Itália no início do século XVII, desenhada a partir da gravura de Zacchia, que, por sua vez, se tornaria a fonte de cópias futuras.


A CONOTAÇÃO EXPRESSIVA DA CENA REPRESENTADA POR LEONARDO É RADICALMENTE DIFERENTE DAQUELA DA CENA DE MICHELANGELO. Em uma espécie de condenação da loucura da guerra, que ele definiu como “loucura bestial”, ele apresentou um emaranhado de homens e animais, destacando a violência da luta e insistindo nas alterações exasperadas das fisionomias e dos humanos e dos animais, quase que freneticamente desenvolvendo seus estudos dos “movimentos da alma” que caracterizam toda trajetória de sua pesquisa artística. (Aqui, considera-se a variedade estudada de expressões que ele utilizou para os apóstolos da Última Ceia no refeitório da Santa Maria delle Grazie em Milão, expressando suas várias reações às palavras de Cristo, ou a expressão inefável, ambígua e indecifrável da célebre Monalisa.)


A VIOLÊNCIA E A IRA DISTORCENDO A EXPRESSÃO DA FIGURA SÃO mais acentuadas nos soldados milaneses, o inimigo. Em particular, no centro da cena, Niccolò Piccinino, capitão das tropas de Visconti, com seu braço direito erguido para segurar uma espada, quase uma presa para os instintos primordiais, expressa uma ferocidade eloquente e extraordinária, claramente evidenciada em um estudo preparatório de seu rosto em uma visão de três quartos, preservado em Budapeste. A imagem corresponde plenamente às indicações de Leonardo em seu Tratado da Pintura para representar os conquistados: “Os conquistados devem ser pálidos e abatidos, com as sobrancelhas erguidas e fechadas, e a pele acima das sobrancelhas franzidas de dor [...] os lábios arqueados para cima, revelando os dentes superiores; e as arcadas separadas, como se estivessem gritando e lamentando”. Expressivamente menos carregada e bestial, em um estudo no mesmo museu, está a representação de Giampaolo Orsini, comandante das tropas florentinas, identificado como o soldado à extrema direita do grupo.


A CENA EMITE UMA ENERGIA PODEROSA, quase se expandindo no espaço. Cada figura está retorcida, criando um emaranhado complexo de corpos humanos e de animais no qual até mesmo os cavalos participam da batalha, lutando entre si. A bestialidade sem controle e o triunfo da violência, expressando uma visão puramente pessimista da humanidade, longe da concepção heróica do homem retratado na Renascença. Juntamente com o desenho de Michelangelo, é uma obra de ruptura que deixa o mundo Renascentista para trás, abrindo caminho para o Maneirismo.

E a obra de Leonardo, conforme observado por Vasari em suas biografias de Rafael, Andrea del Santo e Morto da Feltre, e por Cellini em seus escritos, tornou-se, como a obra de Michelangelo, objeto de estudo para as gerações posteriores de artistas. Juntos, são “a escola do mundo”. *



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