PJL-46

Água

A vida do homem está profundamente ligada à água. Nosso instinto de sobrevivência deveria sugerir que a água – e, com ela, todos os recursos naturais que encontramos nesta Terra – é preciosa, limitada. Estamos autorizados a usá-los, mas eles não nos pertencem e devemos preservá-los para aqueles que virão depois de nós.

Nico Zardo


Em uma das cenas iniciais de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrik, dois grupos de nossos ancestrais, representados por dois macacos grandes, estão lutando pelo controle de uma poça de água. Após o primeiro encontro, aqueles que gritam e esbravejam mais prevalecem e afastam os rivais. Em uma segunda cena, talvez se referindo a muitos anos depois, quando a situação se repete, um dos hominídeos, preocupado com a intenção do rival de dominar a água, reage, atingindo-o com o grande osso de um animal. Este gesto violento é imitado por seus companheiros e eles, também, atacam o rival repetidamente, até que seu corpo desfalecido cai no chão. A interpretação da cena é a de que um dos primeiros encontros fatais entre os hominídeos foi causado pela disputa por água. (https://www.youtube.com/watch?v=ypEaGQb6dJk) Não é difícil determinar o motivo. O homem, cujo corpo é composto por 70% de água, tem uma relação especial e profunda com este elemento devido à necessidade primordial de se manter vivo. Sem comida, podemos sobreviver duas, três semanas; sem água, apenas alguns dias…


COSMOGONIAS, RITUAIS, MITOS, LENDAS transmitidas há milênios em todas as culturas indicam a água como o elemento essencial para cada criação. É o alicerce de todas as formas de vida, elemento onipresente em todas as partes da Terra. Histórias nascidas às margens de rios, nascentes, vórtices, lagoas e poços estão frequentemente conectadas a presenças misteriosas e forças ocultas. O mito da grande sede sentida pelo falecido, difundido em uma grande área da Eurásia, atribuindo ao falecido uma nostalgia pela vida de cortar o coração, parece revelar uma espécie de memória com o caráter essencial da água.

TaleS dE Mileto (século 5 dC), que estava muito familiarizado com as culturas egípcia e mesopotâmica, considerava a água, o arche, elemento material primário, e o faz devido a observações empíricas sobra a importância de processos generativos. O filósofo grego é o primeiro na tradição da filosofia ocidental a explicar as origens do cosmos por meio de uma substância concreta como a água. Na cultura cristã, águas milagrosas muitas vezes nos levam aos cultos de Santa Inês, da Virgem Maria ou dos santos. Por exemplo, na França, os corpos de dois mártires - São Valeriano e São Bausango - foram lançados em dois poços separados de duas cidades francesas, para que a água adquirisse propriedades curativas. Por meio dessas crenças tão próximas do povo, a Igreja, com o tempo, tentou Cristianizar as fontes já objeto de cultos pagãos. A água é um elemento transversal, fluido, mutável, único na sua capacidade de assumir diferentes estados: líquido, sólido, gasoso, e diferentes formas: neve, chuva, gelo, vapor, ar, fluindo em todas as partes da terra, natureza e história. 


QUANDO O HOMEM PASSOU DA VIDA NÔMADE PARA A AGRICULTURA (mais de 10.000 antes da nossa era), foi graças à “domesticação” da água que, confinada em canais ou coletadas em bacias, tornou possível a vida agrícola e a criação de animais. A partir dos vales do Tigre e do Eufrates, do Indus e do Nilo, modelos extraordinariamente opulentos de civilização se desenvolveram. O excesso de produção libertou o homem de necessidades prementes e permitiu-lhe concentrar-se no comércio, artesanato, turismo e artes. No sexto milênio A.C., a cidade-jardim da Babilônia pode ostentar um sistema de irrigação gigantesco que distribuía água para 800.000 hectares, enquanto que seus famosos Jardins Suspensos foram irrigados por tantos canais que ninguém conseguiu contá-los.

Quando não era possível obter água de nascentes ou rios, em particular em áreas desérticas, o homem tentava coletá-la com a foggara ou qãnat: um engenhoso sistema composto por uma série de poços alinhados que drenavam a água subterrânea e água da chuva, que era então recolhida em um canal subterrâneo que interligava todos eles e levava a água para a aldeia ou para o oásis.


COM O CONTROLE DA ÁGUA, propiciado por divindades da época, a vida social cresceu, favorecendo o desenvolvimento da civilização urbana. Por necessidades militares e para afastar a malária, aquedutos foram construídos e, a partir de fontes seguras, trouxeram água para dentro da cidade. Fontes tornaram-se elementos essenciais e sistemas de encanamentos passaram a representar, cada vez mais, obras arquitetonicamente importantes. No século 2 D.C., Roma foi servida por 11 aquedutos e uma rede de dutos principais que ultrapassou 500 quilômetros com uma quantidade de água transportada que chegou a 500.000 metros cúbicos por dia. Considerando que a capital imperial em determinado ponto ultrapassou um milhão de habitantes, este sistema garantiu a cada habitante 500 litros de água por dia, o consumo médio de uma pessoa em uma metrópole moderna como Milão! O historiador grego Estrabão escreveu em seu Geographica: “E a água é trazida para a cidade através dos aquedutos em proporção tal que verdadeiros rios fluem pela cidade e pelos esgotos; e quase todas as casas possuem cisternas, e tubulações de água e fontes abundantes”.


COM O DECLÍNIO DO IMPÉRIO e as invasões bárbaras que destruíram os aquedutos, muitas fontes secaram e a água teve que ser novamente retirada do rio. A veia moralizadora do Cristianismo se opôs ao ideal pagão de um relacionamento hedonístico com banhos e spas, apelidando-o de pecaminoso, distanciando, portanto, o homem da água. Além dos poços, na Alta Idade Média, as principais igrejas dispunham de uma nascente de água onde os fiéis podiam se refrescar e se lavar antes de aceder ao edifício sagrado. Nas aldeias medievais fechadas por muralhas e com a falta de sistemas de esgoto devido à falta de água corrente, todos os tipos de lixo acabavam nas ruas, criando condições de higiene críticas e um alto risco de doenças. Em Paris, antes do século 16, a única obrigação para aqueles que urinavam para fora de suas janelas era gritar “Cuidado com a água!”.


QUANDO A IGREJA COM A SUA CONTRA-REFORMA, prosseguindo com sua fobia pela nudez, contrastou todas as práticas de higiene, os monges nos campos, mantendo seus papéis de detentores do conhecimento no início do século 5 e, utilizando a água de forma inteligente, começaram a aperfeiçoar as práticas de irrigação (especialmente na Lombardia) mostrarem-se úteis para o progresso da agricultura.

A difusão dos moinhos d’agua multiplicaram a produtividade da força humana em quarenta vezes, e a partir do final do século 7, eles foram utilizados – além de na moagem de cereais - também para a indústria têxtil, para o processamento de metal e, dos séculos 13 a 18, para fabricação de papel. E é a água que dará um grande estímulo para o progresso do homem quando – primeiro com a força do vapor e mais tarde com a hidrelétrica de energia - é usada para a energia de maquinários, navios e trens em todos os cantos do planeta.


NO FINAL DO SÉCULO 19, O HOMEM ESTABELECE UMA NOVA RELACÃO COM A ÁGUA Com o conforto da modernidade e a noção de potabilidade proporcionada pelos estudos de Pasteur, ele estabelece uma relação com a higiene que permite a socialização urbana em escala de metrópole. Hoje, a água não é algo para todos: de acordo com a Water.org, 10% da população do planeta não tem acesso a água potável e 1/3 não tem saneamento. A cada 90 segundos, uma criança morre de doenças relacionadas com a água. Essas estatísticas trágicas destacam que a água é vital para a sobrevivência da espécie humana. Sua crescente importância é cada vez mais incômoda porque, diante de sua quantidade limitada, o aumento da população mundial a torna ainda mais preciosa: em muitas regiões de nosso planeta, ela é escassa e está se tornando um motivo para conflitos.

Nosso instinto de sobrevivência deveria sugerir que a água - e, com ela, todos os recursos naturais que encontramos nesta Terra - é preciosa, limitada. Estamos autorizados a usá-los, mas eles não nos pertencem e devemos preservá-los para aqueles que virão depois de nós. *



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